textos LU ZUÊ
fotos GABRIEL LOTT, CARLOS BORTOLOTTI E FLÁVIO JORDÃO
O fascínio que a vontade de voar exerce sobre os homens não é recente. E entre todos os que olham para o céu e deixam a imaginação voar solta, existem aqueles que ficam só na vontade, aqueles que preferem apenas observar, aqueles que se contentam com viagens de avião… e existe o Gabriel Lott, para quem simplesmente voar, é pouco!
Movido por desafios, esse atleta de wingsuit (aquela modalidade em que o praticante “plana”, usando o traje com “asas de morcego”) nascido em Niterói (RJ), procura sempre o algo a mais. E encontra!
Na última semana de maio de 2021, num lindo e ensolarado domingo, o então mais recente “algo a mais” ele encontrou aqui em Santa Catarina, e deu show! Saltando de um helicóptero, Lott atravessou a fenda da Pedra Furada, que fica em Urubici – nos limites do Parque Nacional de São Joaquim –, a uma velocidade de 200 km/h e pousou, tranquila e suavemente, numa pequena clareira em meio a uma grande e densa mata, a cerca de 2,5 km do alvo principal. Da saída do helicóptero até o momento em que tocou chão não se passaram três minutos, mas pareceu uma eternidade para quem assiste a aventura. “Loucuraaaaaa!”, foi o grito que soltou quando tocou o chão. Alguém discorda? A ideia de fazer esse salto não é recente. Gabriel conta que em 2015, ele e o amigo Fernando Brito receberam uma foto da Pedra Furada e ficaram encantados. Quando souberam que ficava no Brasil, então, parecia um convite. “Não há como discordar que ela é linda! Na mesma hora pensamos: “Imagine passar por essa pedra voando!”, e ficamos com o lugar na cabeça”, conta o atleta. Pouco tempo depois, em junho de 2016, Brito realizava um salto na Pedra da Gávea (RJ) com mais dois amigos quando sofreu um acidente fatal.
O projeto da Pedra Furada continuou nos planos de Gabriel Lott, até como uma forma de realizar, também, o desejo do amigo. “Continuei saltando, participei do campeonato mundial e somente agora eu consegui concluir o planejamento e obter todas as autorizações para que o salto fosse realizado de forma legal”, explica Lott, enumerando a necessidade de permissão para uso do espaço aéreo, do ICMbio (que administra o Parque) e do proprietário do terreno onde aconteceu o pouso. No total, mais de 20 pessoas estavam envolvidas na organização.
Durante todo o processo de planejamento e execução, Lott contou o apoio de Flávio Jordão, líder da Fly Brothers, uma equipe que reúne os melhores atletas brasileiros de Wingsuit Base. E haja planejamento: o vão da Pedra Furada tem 6 metros de largura por 10 metros de altura, num local onde o vento é frequente e as nuvens quase sempre presentes. Considerando-se as condições e a velocidade, qualquer erro poderia ser fatal. E com o planejamento pronto, o ritual de Gabriel antes do salto é sempre o mesmo. “Eu mentalizo o salto inteiro várias vezes antes de realizá-lo”, diz. Simples assim.
Essa não foi a primeira vez que Gabriel saltou aqui no Estado. Antes disso, ele já havia se aventurado no Cânion da Encosta do Espraiado. “Em 2020 eu recebi um convite do Lucas de Zorzi, que morava em Lages, para abrirmos novos pontos de salto na beira do cânion. Abrimos quatro, e um mês depois eu voltei, para mais um salto sobre o qual ainda não posso falar, porque ele faz parte de um projeto ainda não lançado”, comenta.
Em outubro do ano passado, durante uma escalada nesse mesmo cânion, Lucas foi atingido na cabeça por uma pedra, e o ferimento foi fatal. Mais um amigo que se foi, e mais uma razão para Lott realizar a passagem pela Pedra Furada. “O Brito (Fernando) foi quem teve a ideia junto comigo e com certeza estaria aqui. Depois disso, o Lucas. Já tínhamos até combinado o salto. Então, essa realização é uma homenagem aos dois”, afirma.
Algum novo desafio em mente? Claro que sim, e ele deixa o suspense no ar. “Tenho alguns, mas o principal, o que está me tirando o sono, é aí mesmo em Urubici. Vocês verão!”, conclui.
Antes de chegar aqui…
Inquieto e corajoso, Gabriel sempre foi adepto de atividades esportivas. Além de praticar diferentes modalidades de luta, aventurou-se no mountain bike e no mergulho, mas em 1997, aos 18 anos, quando foi servir ao Exército Brasileiro, ele escolheu entrar para a Brigada Paraquedista. Não deu outra! “O primeiro salto já foi incrível! Dali surgiu a paixão!”, relembra.
O primeiro contato com o Base Jumping (quando os saltos de paraquedas são feitos a partir de pedras, penhascos, edifícios ou pontes) foi no ano seguinte, enquanto ele assistia vídeos de paraquedismo e viu alguns saltos dessa modalidade. Naquela época, a dificuldade de acesso a esse esporte era muito grande, mas a ideia ficou plantada na cabeça de Gabriel, como um desafio para o futuro. Foi nesse mesmo período, inclusive, que ele viu pela primeira vez um salto de wingsuit. “Eu estava morando na Inglaterra e saltando por lá, e em uma área de saltos chamada Skydive Hibaldstow vi um cara saindo do avião com um wingsuit. Lembro que achei legal, mas não me imaginei fazendo aquilo”, confessa. E até que demorou para tentar. Foi só em 2009, saltando de um avião, que Lott fez seu primeiro salto de wigsuit. Por incrível que pareça, sem qualquer conhecimento teórico ou treinamento prévio, usando o traje de um amigo (Tiago Cobra), ele resolveu tentar. “Foi horrível. Girei sem parar, mas fiquei com aquilo na cabeça. Sou daquele tipo de pessoa que pensa: ‘se alguém pode eu também posso’. Acabei comprando o traje dele!”, diz. Ao longo de um ano foram nove saltos, mas crítico com seu próprio desempenho, Gabriel confessa que aprendeu muito pouco durante esse tempo.
O Base Jumping continuava na cabeça! E a primeira experiência também veio meio que por acaso. Gabriel foi socorrer o basejumper canadense Rob Heron, que estava saltando de uma ponte próxima à cidade de Resende e havia ficado sem gasolina. Como forma de agradecer, Rob ofereceu o equipamento para que Gabriel experimentasse saltar da ponte. “No fundo acredito que ele achou que eu não fosse aceitar, mas aceitei na hora. A dobragem era dele e eu fui sem instrução alguma, mas não recomendo isso a ninguém. Deu tudo certo, mas se algo saísse errado eu não saberia o que fazer. Depois desse dia, fiquei louco com o esporte”, diz, sorrindo.
Com limitações financeiras para fazer cursos específicos, muito do que Gabriel aprendeu veio a partir da observação, tentativa, repetição. Segundo ele, fácil não foi, pois passou por vários sustos que poderiam ter sido evitados com as devidas instruções. Paixão não se controla, e um após o outro, os saltos foram acontecendo. Até que um dia, saltando com amigos na Pedra da Onça, no Espírito Santo, por brincadeira mostrou o traje de wingsuit que estava no porta-malas do carro. “Eles começaram a brincar, me desafiando a saltar da pedra com o traje. Mas eu levei a sério e fui. Era o meu 27o salto de Base Jumping, e eu só havia feito nove saltos de wingsuit do avião, ao longo de um ano. Novamente por pura sorte deu certo. Fiquei apaixonado e não parei mais. Saltei muito!”, conta Lott, explicando que foi na pedra que ele realmente aprendeu a voar de wingsuit. “Mas foi lá, também que aprendi, a duras custas, o que era errado”, completa.
Realmente, os desafios movem esse atleta. E foi justamente por se sentir desafiado que Gabriel venceu uma das maiores provações de sua vida.
Sniper (atirador de precisão) de uma força policial de elite no Rio de Janeiro, no início de 2017 Lott foi atingido por um tiro de fuzil no tórax. A bala perfurou os dois pulmões, e provocou perda de musculatura e tecido ósseo. Foram vários dias na UTI, em estado grave. Pouco antes dessa ocorrência, ele havia sido convidado para participar do campeonato mundial de wingsuit, que aconteceria em outubro daquele ano, na China, e de uma hora para outra teve que encarar a possibilidade de nunca mais poder voar. “Meu braço ficou travado, eu não conseguia me mexer, e os médicos repetiam que eu não iria voltar a voar. Isso foi determinante para minha recuperação. Eu pensava: tenho que ir de qualquer jeito”, lembra.
E foi. Não só foi, como conquistou o título precisão (modalidade na qual o competidor, a uma velocidade de 200 km/hora, precisa atingir um alvo suspenso no ar). “Nesses 24 anos e paraquedismo e dez de Base jumping, tive a oportunidade de viver experiências maravilhosas ao lado de pessoas especiais, mas também já perdi grandes amigos. Infelizmente isso faz parte da vida, e tudo contribuiu para o meu crescimento espiritual e profissional”, finaliza Gabriel Lott.