Onde a advocacia e a arte se encontram

Os advogados Rafael Bornhausen e Marcelo Peregrino apresentam com exclusividade à Mural o novo escritório em Florianópolis, onde passaram a expor suas coleções com preciosidades de Martinho de Haro e de outro grandes artistas

textos URBANO MAYA SALLES

fotos MARCO CEZAR

Um escritório com conceito de galeria de arte. Assim é o endereço profissional dos advogados Rafael Barreto Bornhausen, Lauro Cavallazzi Zimmer, Rodrigo de Carvalho e Marcelo Ramos Peregrino Ferreira no Centro de Florianópolis. O surpreendente – e belo – espaço foi inaugurado em 2020, mas só neste começo de 2023 está sendo apresentado à imprensa. A Mural foi convidada a conhecê-lo em primeira mão.

Rafael fez as honras da casa percorrendo com a equipe da revista os corredores e ambientes do amplo escritório, com mezanino, localizado no Ceisa Center, prédio icônico construído nos anos 1970. No total, o escritório + galeria tem 132 telas das coleções particulares de Rafael e Marcelo. Os dois artistas predominantes são Martinho de Haro (1907-1985) e o filho, Rodrigo de Haro (1939-2021). Bornhausen tem mais Rodrigos, enquanto o sócio tem mais Martinhos. Além deles, há obras de diversos outros pintores catarinenses famosos, entre eles Ernesto Meyer Filho e Eli Heil, e ainda obras de artistas de outros estados.

As duas coleções dialogam como se fossem uma só. Essa fluidez foi facilitada pela galerista e marchand Helena Fretta, responsável pela curadoria artística do escritório. “Chegamos a pensar em colocar nossas coleções em comodato no MASC ou na Alfândega, antes da última reforma. Quando decidimos nos mudar para um imóvel mais espaçoso, porém, concluímos que era hora de convivermos com nossas obras, e daí veio a ideia da ‘galeria de arte’. A maior parte do acervo estava guardada, longe dos olhares. Agora, além de ele poder ser apreciado por quem vem ao escritório, temos planos de organizar visitas guiadas para alunos da rede pública. Também planejo lançar um site para uma exposição virtual”, anuncia Bornhausen.

Na sala principal onde ele recebe os clientes é onde está a obra mais curiosa: um mosaico vertical em homenagem a Santa Catarina de Alexandria, padroeira de Florianópolis, desenhado por Rodrigo e executado por Idesio Leal, discípulo e fiel parceiro do artista durante mais de 40 anos. A obra reveste uma coluna localizada no meio do ambiente, numa solução arquitetônica que acabou por dar mais destaque ao trabalho.

Atrás da mesa de Rafael, outro tesouro: dois quadros de Martinho retratando as igrejas do Rosário e São Francisco. À esquerda, oito telas da série Tarô, uma das mais admiradas da carreira de Rodrigo, presente também em totens na Cidade Pedra Branca, na Grande Florianópolis.

Bornhausen relata: “Ainda na pré-pandemia, em meados de 2017, comprei praticamente tudo que ele ainda tinha no ateliê. Eu ia quase semanalmente na casa dele”.

Muitas vezes, comprar uma obra demanda tempo e paciência. Foi o que aconteceu com um Martinho: “Levei três anos para comprar, porque no começo o preço estava alto. O quadro mostra a casa da decoradora pioneira Alicinha Damiani no Largo Benjamin Constant. Foi ela que havia decorado a residência dos meus pais em Itaguaçu. Eu ia com minha mãe e ficava brincando na varanda do casarão que Martinho havia retratado. O cenário fazia parte da memória da minha infância”.

O advogado afirma que durante anos nunca “ousou” tentar comprar de Rodrigo dois retratos pintados por Martinho que, conforme observa, pareciam invendáveis e eram os mais desejados pelos colecionadores: um de sua mulher, Maria de Haro, e o outro do próprio Rodrigo. “Foi assim até o dia em que o amigo Idesio me telefonou solicitando que adquirisse as telas. Ele disse que o Rodrigo gostaria que elas ficassem na minha coleção.”

O retrato de Rodrigo foi feito em 1947, quando ele tinha oito anos. “É uma obra-prima, ela reproduz com maestria a opacidade do olhar que o filho tinha desde a infância por causa de uma doença”, explica.

Apoio à arte

A paixão de Rafael pelas artes plásticas dá sequência à história de incentivo dado por sua família a artistas de Santa Catarina desde o século passado. No caso de Martinho, uma passagem se destaca. O avô paterno do advogado, o ex-governador Irineu Bornhausen (1896-1974), contratou o pintor para fazer o mural “Casa de Farinha” no Palácio da Agronômica (atual “Casa d’Agronômica”), residência oficial do chefe do Executivo inaugurada durante sua gestão, em 1955. O trabalho está no local até hoje. “Ele fez um estudo do mural e guardou. Quando meu pai (Jorge Konder Bornhausen) foi indicado para ser governador, em 1978, ele foi lá e deu de presente o estudo. Hoje, está aqui no escritório”, relembra o advogado.

Outro grande talento apoiado fortemente pela família foi Agostinho Malinverni Filho (1913-1971), o mais célebre artista lageano, consagrado por suas paisagens serranas. Uma delas, um cenário com araucárias, é destaque no acervo exposto no escritório.

De acordo com o jornalista Moacir Pereira em seu livro “Malinverni Filho: A Vida Pela Arte”, os motivos reais do cancelamento nunca foram esclarecidos, mas tudo indica que Malinverni pagou um preço por ter sido afilhado de Aristiliano Ramos, que, embora fosse primo de Nereu, acabou se tornando seu adversário.

Malinverni também era escultor, e deixou trabalhos em diversas cidades catarinenses. Na sua terra natal, apesar das questões políticas, ele se inscreveu e venceu um concurso público para fazer uma estátua em homenagem a Nereu. Enfrentou, então, mais um dissabor: não foi convidado para a inauguração. A estátua é considerada uma obra-prima. Também é primoroso o busto em homenagem a Carl Hoepcke na Praça Getúlio Vargas, no Centro de Florianópolis.

Déa Barreto Bornhausen, mãe de Rafael, é da mesma forma apreciadora do mundo das artes plásticas. Ela foi organizadora de um livro dedicado à obra e vida de Martinho. Já o pai, o ex-governador Jorge Bornhausen, tem uma sala de trabalho no escritório – e também há arte embelezando o espaço. Chama atenção nele um quadro pintado pela avó paterna de Rafael, Marieta Konder Bornhausen, mostrando um sítio da família em Rio do Sul. O advogado tem uma atividade artística própria: a fotografia de aves em seu habitat natural. Já participou de várias exposições, e uma seleção dos seus trabalhos está reunida numa das salas do escritório.

Genialidade

Rafael e Marcelo avaliam que Florianópolis até hoje não deu o reconhecimento merecido por Martinho de Haro, que nasceu em São Joaquim, mas fez sua carreira na Ilha de Santa Catarina.

“Foi um gênio brasileiro. Sua tragédia profissional foi ter sede em Florianópolis, uma cidade ingrata com sua cultura. Mesmo assim, pintou seus antigos casarões, hoje derrubados em nome de um progresso medíocre. Sou fã dos seus retratos e de suas mulheres, para mim a melhor parte do seu trabalho. Mesmo diante da sua importância, não temos sequer um museu para as novas gerações conhecerem sua obra”, aponta Marcelo.

Rafael reforça: “Ele era considerado por Di Cavalcanti o melhor pintor da época. Certo dia, ele falou ao meu avô (Irineu) no aeroporto no Rio: ‘Onde está o Martinho? Que desperdício! Ele é o maior pintor da nossa geração!’”.

Sobre o reconhecimento da obra de Rodrigo, Rafael também adota um tom crítico: “Foi o nosso Gaudí, um artista multifacetado. Pintor, poeta, mosaicista, pintor em cerâmica. Florianópolis perdeu uma oportunidade de ter feito uma promoção cultural e turística ao redor da obra dele. É verdade que há obras dele na praça do Hemosc, na Praça dos Três Poderes, na Reitoria da UFSC e em outros lugares, mas faltou, talvez, uma visão dos dirigentes para fazerem, por exemplo, um parque ou um ponto turístico com suas obras. Poderíamos ter aproveitado a genialidade dele como Barcelona aproveitou a de Gaudí”.

Além da grandiosidade da obra em si, Martinho e Rodrigo deixaram suas marcas na história da preservação da cultura da cidade nas últimas décadas do século passado.

Idesio Leal conta que Martinho se deitou no chão para impedir que as máquinas começassem a demolir o prédio da Alfândega. A mesma atitude tomou o filho em relação ao Teatro Adolpho Mello, em São José. Quando souberam que iriam derrubá-lo para construir um supermercado, Rodrigo e o também saudoso escritor e cinéfilo Gilberto Gerlach (1943-2021) lideraram uma mobilização contrária ao projeto e procuraram o apoio do então governador Jorge Bornhausen à preservação da histórica edificação. O final foi feliz: o teatro foi restaurado e recebeu a preciosa obra de Rodrigo batizada como “A Viagem dos Argonautas”.

Uma história pitoresca comprova como Florianópolis, de maneira geral, desconhece a obra dos Haro. Quando a cantora norte-americana Beyoncé veio fazer show na cidade, em 2010, ficou hospedada num hotel na Avenida Beira-Mar Norte onde há uma obra de Rodrigo na parede por cima da porta da entrada. Testemunhas da época relatam que ela ficou ansiosa para saber quem era o artista. “Quero ir no ateliê deste artista!”, pediu a superestrela da música. Infelizmente, ninguém na recepção sabia de quem era a obra, e Rodrigo, assim, deixou de receber a visita da cantora, que, com certeza, faria promoção dele no mundo inteiro.

Há, porém, uma luz no fim do túnel. Em janeiro de 2023, Idesio Leal anunciou que a casa onde Rodrigo morava, em frente à Igrejinha da Lagoa da Conceição, está sendo reformada para ser um centro de referência para estudiosos e admiradores do artista.

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