Recebo Lúcia Helena Coelho Prazeres no meu apartamento para a entrevista. É a segunda vez que me visita. Ela chega no prédio dirigindo seu jipe Suzuki de coleção trazendo de presente duas caixas com CDs dos anos 1980 e 1990. Depois de um tempinho papeando como amigos, cai a ficha: vamos logo ao trabalho! Ela fica descalça, procura a posição mais confortável na poltrona. “Tô me sentindo em casa, tô me adorando aqui”, comenta a fundadora da Vício da Gula, delicatessen pioneira em Florianópolis, hoje dedicada de corpo e alma à produção de festas e outros grandes eventos, entre eles a Feijoada do Cacau, e à família, aumentada nos últimos anos pela chegada dos netos. E assim, com muitas boas histórias para perguntar, começo a gravar a conversa.
Mural: Já eras assim, agitada, quando pequena?
Lúcia: Acho que a gente já nasce com uma personalidade. Eu sempre fui hiperativa. Se tivesse Rivotril, a minha mãe já teria me dado desde os quatro anos e eu hoje eu poderia estar completamente lesada. Como ela não dava conta, procurou um psicólogo e descobriu que eu tinha uma inteligência acelerada e uma energia acelerada. Fui criada no meio de muItos meninos, não virei sapatão, mas fazia todas as atividades dos garotos, por causa dessa hiperatividade.
Mural: Você era “musa” da chamada turma do Beto (Stodieck). Como foram aqueles anos loucos?
Lúcia: Foram os anos mais maravilhosos que tive, vi do que eu era capaz, cresci com gente muito mais inteligente que o normal e que sempre respeitou a vida no limite. Tipo: vamos tomar banho de mar às 3 da manhã! Nunca fui retraída ali, sempre pude ser quem eu queria ser. Outra hora eu descia o morro da Lagoa de skate! Aquilo me dava adrenalina, me dava alegria. Os anos com o Beto foram de autoconhecimento porque me envolvi com pessoas magníficas. Até hoje, quando tenho saudade, não tenho medo de ligar para os amigos daquela época.
Mural: E quando você descobriu que poderia ganhar dinheiro com essa energia acelerada?
Lúcia: Quando eu casei, estava grávida do Rodrigo, eu queria fazer um quarto verde, com um berço que balançava, aí descobri que, além de dar aula para crianças, eu podia fazer outras coisas porque o meu tempo não era igual ao das outras pessoas. Meu tempo parecia maior que o dos outros. Aí comecei a trabalhar com a dona Érica (Thiesen) na Foxtrot, passei a gerente, aí fui para Jaraguá vender chapéu da Marcatto.
Mural: Quer dizer, de alguma forma continuas sendo uma vendedora até hoje. Precisas vender tuas ideias, teus conceitos de festas.
Lúcia: Hoje é bem mais difícil. Sabe, eu adoro dinheiro, sempre adorei, e não tenho vergonha de dizer isso. Não é que eu seja rica, e também não quero ser rica, quero ter a vida que tenho.
Mural: Tens fama de rica…
Lúcia: Tenho fama, mas na verdade sou rica de espírito porque tenho o espírito do porco, e porco sempre traz fartura. Para ter as coisas que eu tenho eu trabalhei muito. Já cheguei a ter três empregos e dei conta de todos. Um tempo atrás, vi que não consigo ficar muito tempo sem vender, se eu fico, eu faço alguém comprar, é uma coisa louca. Hoje tenho que vender um produto muito mais difícil. Além de vender uma ideia, tenho que vender o que o bolso do cliente pode pagar, tirar a fama de que estou vendendo caro e estou ajudando ele a economizar, porque eu faço encomenda de mesa há 15 anos, meu fornecedor, se você for alugar, ele não vai te dar desconto. Nós que somos produtores temos a vantagem de ter desconto, porque fazemos isso quase toda semana, e isso baixa o preço, o que faz o meu cliente pagar mais barato.
Mural: Então é uma lenda urbana que a Lúcia só faz festas caras para ricos e milionários?
Lúcia: Superlenda! Não precisa ser rico, precisa apenas acreditar que eu estou querendo fazer mais alguém feliz. Eu já fiz festas para duas pessoas, um casal, decorei a casa como se fosse para 100 pessoas, fazendo uma playlist, chamando o sushiman, botando flores, velas, deixando a casa com um cheiro maravilhoso. Tudo que eu gosto para mim e fica no magic, no sonho, acho que faz bem para qualquer pessoa.
Mural: O que algum cliente pode fazer que te tira do sério, que te irrita?
Lúcia: Primeiro, cliente sempre pode tudo, mas eu sou muito teimosa e muito das minhas ideias. Exemplo: o cliente quer colocar o bar na descida da escada onde todo mundo vai subir. Eu chego e falo, cara, o teu bar vai ficar lindo na varanda, não dá para ser na escada, e proponho isso. Aí eu monto antes e chego no dia da festa vejo que o cliente botou o bar na escada! Isso me incomoda muito. A história de eu querer ajudar a pessoa a começar a sonhar um dia antes, e quando chego lá ela mudou tudo… Isso acontece com pessoas que acham que podem ser produtoras também. Eu cato tudo, arrumo tudo para ele depois mudar? Mas faz parte da função. É a mesma coisa que um médico me receitar um remédio e eu conversar com um benzedeira e ela me dizer para tomar um chazinho. Quando eu voltar e não estiver legal, é claro que o médico vai ficar muito irritado.
Mural: Como funciona tua rede de contatos no trabalho? Suponhamos que alguém te liga pedindo uma festa com um prazo apertado. Como você faz para juntar todo mundo?
Lúcia: Odeio quando alguém me liga para uma festa daqui a dois anos. Adoro fazer caldo de cana ou pastelzinho frito, quando a pessoa está toda atrapalhada, fala que lembrou de mim e a festa é daqui a uma semana. Aquilo me faz um bem, me traz uma energia, porque adoro saber que eu tenho que entregar o sonho da pessoa rápido, em um mês, dois meses. Às vezes chegam e dizem que vão casar daqui a um ano e querem pagar agora para ficar na agenda. Eu não recebo, sou contra isso. Preciso provar que fiz bem feito e depois receber. Além disso, a noiva pode mudar tudo um mês antes. Tudo que faço é porque tenho uma grande rede de fornecedores em vários estados e tenho transporte, tudo muito rápido. Se eu ligar encomendando calla preta, uma flor dificílima, eu consigo colocar em Florianópolis em uma semana. O bolso do cliente é que vai dizer: quero ou não quero.
Mural: O que mais pesa na hora de fechar um contrato?
Lúcia: Hoje é a situação econômica, cada vez mais isso. O cliente sonha com um jatinho e acaba levando um helicóptero. Ele não abre mão de voar, vai voar igual, mas em outra aeronave mais barata.
Mural: Qual festa você considera a tua “Monalisa”, a tua obra-prima?
Lúcia: Muitas! Pra mim a coisa mais legal é quando eu entrego e a pessoa fala assim “meu deus, era isso que eu tinha imaginado, ficou ainda melhor que eu imaginei!”. Há uns meses, no lançamento da loja da Artefacto em Camboriú, eu imaginei um vaso que me desse a impressão de uma saia de bailarina. Tive que correr atrás do vaso, era caríssimo, não tinha como locar. Imaginei também uma espada de são jorge diferente, “chifre-de-viado”, e eu queria que ela tivesse dois metros. Tive que correr meio mundo e quando terminei e vi que ela ficou uma bailarina, eu gritava emocionada, feliz da vida, porque uma coisa que parecia difícil se tornou muito fácil. Às vezes, quando eu vou num cliente e ele me fala, eu vejo aquilo pronto, mas tem sempre um “kinder ovo” nas minhas festas, algo surpreendente.
Mural: Como tem sido a experiência na produção da Feijoada do Cacau?
Lúcia: Nesses cinco anos, fizemos interferências pontuais. Por exemplo, colocamos dançarinas, mesa de frutas, um lounge para o Cacau se sentir agradável e poder receber as personalidades. Contando com fornecedores, trabalhadores, faxineiras, nosso trabalho envolve entre 80 e 90 pessoas todos os anos.
Mural: Teu passaporte é um dos mais carimbados da cidade.
Lúcia: Viajo para tudo quanto é lugar louco quando eu tenho vontade. Não tenho medo, enquanto tiver saúde vou viajar. Não vou para lugar normal. Só passo por lugar normal para ver tendências. A cidade que mais me impressionou é Singapura, é a nova Nova York! Ando louca para morar em Vancouver. O Renato (marido) deve se aposentar agora e quero trabalhar lá uns três meses no verão como atendente de supermercado, empacotadora, bem palpiteira, aproveitando para melhorar meu inglês, que já é mais ou menos. Tenho muitas histórias loucas. Já acampei no deserto do Saara. Dormi numa medina no Marrocos, parecia um palácio, suntuoso, com jardins internos, banheira de ouro. Já fui três vezes ao Marrocos e duas ao Vietnã.
Mural: Como é a Lúcia avó?
Lúcia: Sou superfamília, adoro ter meus filhos (Rodrigo, Bárbara e Nicholas), meus netos (Benjamin e Lorena), minha nora (Mônica), meu genro (Fernando). Quando o Benjamin, o neto mais velho, nasceu, foi como seu eu voltasse a ser uma adolescente de 14 anos, como se estivesse me apaixonando e descobrindo o amor pela primeira vez, mas de uma maneira que me emociona tanto que não consigo falar… Ele nasceu príncipe. Loiro, olho azul, gordinho, não tinha uma marquinha de joelho! E tem a Lorena, a minha princesa, de uma personalidade fantástica! Tenho a família que queria ter e quando posso estou com eles, dou oportunidade de eles viajarem junto. A Lorena, eu sinto, já é do mundo, tem dois anos e meio e só aos EUA ano passado ela foi quatro vezes.
Mural: E a conexão Miami?
Lúcia: Meu irmão (Aderbal) mora em Miami há 10 anos. Passamos o último Natal e o ano novo com a família toda lá, 22 pessoas. Gosto de Miami, o grande problema é que lá precisa mais dinheiro, porque lá você se sente num passeio e tem de tudo! Quando vejo já comprei abridor de lata diferente, três budas, 20 vestidos.
Mural: Seria um lado acumuladora?
Lúcia: Assumo. Tenho a Andréa (Coelho) que é minha cunhada e decoradora. Há um ano resolvi arrumar o meu apartamento, então eu disse para ela: quero ser uma pessoa clean! Tiramos tudo o que tinha na minha casa. Mas tem coisas que eu avisei que não poderia dar porque remetem ao meu passado, contam a minha história. Tenho fotos das viagens nas paredes, tenho mania de colecionar galinhas, já tenho 230 na minha cozinha. Aliás, eu testo a empregada, se ela limpar bem minhas galinhas, tá contratada. O Renato também acumula, e aí… Tem mais: odeio comprar coisa um, gosto de comprar sempre dois, para poder emprestar e até porque eu não tenho só uma casa. Hoje eu cuido de três, fora o hostel do Nicholas. Ratones pegou fogo. Além do apartamento no Centro, temos apê na Brava e a casa no Morro das Pedras.
Mural: A casa no Morro das Pedras é a tua menina dos olhos, não é mesmo?
Lúcia: Todo dia, acordo e digo: obrigado, senhor! Eu amo esse lugar. Devo ser muito especial para ter conquistado isso. É um sonho de consumo.
Mural: O que pretendes acumular em 2017?
Lúcia: Vou acumular carimbos no meu passaporte. Quero terminar de conhecer a África, ir ao Quênia e Moçambique, quero ir para a Romênia. Adoro experiências. A Índia me deu desprendimento, voltei tão desapegada que talvez eu volte lá para ficar mais desapegada com as coisas lá de casa.
Mural: Onde estão as pessoas da chamada “alta sociedade” hoje em Florianópolis?
Lúcia: Estão em casa, querendo sair. Tem muita gente chique, bacana, mais jovem, que às vezes nem vem de uma família tradicional, mas se destaca porque tem bom gosto. Chique é ser educado, ter respeito pelos outros, saber usar as palavras mágicas, por favor, muito obrigada, dar a mão à pessoa mais velha, ter um olhar diferente. Não é chique só porque comprou com dinheiro.
Mural: A figura da socialite ainda existe?
Lúcia: Isso acabou. Zury Machado e Celso Pamplona morreram. Hoje tem muita gente que não é conhecida e tem tanto élan quanto as de antigamente. Se for na APAE, no Joana de Gusmão, vai encontrar as verdadeiras socialites. Socialite hoje é quem pode doar um pouco do seu tempo para fazer alguma coisa para os outros.
Mural: Qual o grande charme de Florianópolis?
Lúcia: Tem muitos charmes, desde olhar do meu apartamento e ver o Morro da Cruz até passar pela Beira-Mar, que embora não tenha uma marina, mesmo assim acho linda. O manezinho é tudo “deixa sossegado”, mas tem pessoas de um outro estado querendo dar palpite e dizer que a gente não pode ter uma marina ou um canal para ter o barco em frente de casa. Esse pessoal de fora, do contra, nunca viajou ou é incompetente. Tem ainda o problema da política, ao invés de ficarem a favor de fazer o belo, ficam a favor de amigos, e aí a coisa não anda. Isso me incomoda profundamente.
Mural: Defina Donald Trump.
Lúcia: Louco, megalomaníaco. Mas vou te falar, ele fez no Panamá uma cidade nova bacanérrima. Conheço muitos empreendimentos do Trump, inclusive me dei ao luxo agora em Miami de ir ao edifício que ele tem na Collins Avenue. Acho que ele vai fazer os EUA ficarem super bem na foto durante dois ou três anos e depois levar o país à bancarrota porque ele gosta de fazer dívidas. O cabelo é cafonérrimo! Achava engraçada a mulher anterior dele, era uma Imelda Marcos. A atual é uma manequim. Mais não quero saber, porque sei que nunca vou chegar perto dela.
Mural: Qual o conselho que darias a um jovem que planeja ser produtor de festas?
Lúcia: Primeiro, ter um bom conhecimento na área de fornecedores de festas. Em segundo, tomar (calmante fitoterápico) passiflora para não ter problema. Em terceiro, tem que topar tudo, seja lá qual for a ideia. Eu acho bem difícil juntar as três coisas, tem que ser uma pessoa super admirável. Energético, nunca tomei. Não bebo em festa que faço. É bom que os mais jovens saibam que produzir festa não é só um mundo de champanhe e brindes.