Liberdade – e precisão – na arte de WAGNER KUROIWA

Traços, cores, texturas e variadas técnicas despertam a atenção sempre para lindos, diferentes e instigantes detalhes

texto LU ZUÊ   fotos ACERVO PESSOAL E MARCO CEZAR

É possível passar horas observando os quadros do paulista Wagner Kuroiwa, e a cada olhar perceber algo novo na composição da narrativa. “Sempre acrescento mesmo muitos elementos. É como se fosse um romance, onde existem muitas histórias paralelas, uma novela onde existem os protagonistas e, também, vários outros personagens. E com isso, espero despertar lembranças, reminiscências no público”, explica o artista.

Médico por formação – e muito mais do que isso, por paixão – desde criança e inspirado pelo pai, que pintava com crayon e aquarela,  Kuroiwa pintava e desenhava sempre, mas nunca frequentou qualquer curso na área e, assim, considera-se autodidata. “Eu tinha muito interesse e alguma habilidade, e aos poucos os trabalhos foram ganhando corpo. O meu grande sonho era ser médico, mas eu nunca parei de pintar e desenhar”, diz. O que era uma forma de manifestação de emoções, segundo confidencia, tornou-se uma obsessão, porque enquanto estava em reuniões ou ao telefone, as mãos seguiam rabiscando e desenhando alguma coisa. De certa forma, esse hábito foi, mais tarde, o ponto de partida para o estilo de trabalho retratado em muitas de suas obras.

Filho de um imigrante japonês que se apaixonou por uma descendente de imigrantes italianos – dois estilos muito diferentes de ser – , Wagner Kuroiwa é fruto de uma união ‘pouco provável’, como ele define. “Especialmente na época da guerra, quando havia muito preconceito contra os imigrantes. E para a família do meu pai, era impensável que ele se casasse com alguém que não fosse japonês. Mas o amor venceu”, conta. E  – sem surpresa – essa mistura de origens tem muita influência sobre a forma de ser e trabalhar do artista, que fala de forma serena e calma mas gesticula bastante; desenha e pinta de forma precisa e minuciosa, mas se aventura pelas cores fortes e novas técnicas; que escolheu a Medicina desde sempre, mas não se conteve na prática exclusiva e carregou a arte consigo pela vida. “Os elementos da natureza do indivíduo são o seu caráter identitário constitucional. Então, acho que, inegavelmente, essa atenção à minúcia e a paciência vêm da minha origem nipônico oriental. Mas o que sempre me encantou na arte foi desfrutar do ato de fazer, que é muito enriquecedor e gratificante”, confessa.

Experimentar e criar

Se hoje os detalhes presentes nos quadros são uma forma fantástica de se expressar – sim, porque reúnem elementos que materializam lembranças e sentimentos – e um deleite para quem observa, o artista destaca que suas pinturas anteriores e até a década de 1990 foram marcadas por trabalhos figurativos como paisagens, flores e até mesmo figuras humanas.

Na verdade, Wagner Kuroiwa pinta o que lhe desperta emoção. “Não penso em fugir de técnicas ou seguir modismos. Ainda hoje, por exemplo, faço paisagens. Quando estive em Florianópolis, fui visitar o centro histórico de São José, e naquela praça tão bonita tinha um jacarandá florido. Sentei lá no chão e pintei a árvore. E eu  tenho um prazer muito grande com esse tipo de trabalho”, reforça.

E de onde vieram os pequenos elementos que aparecem em seu trabalho, constituindo um estilo pra lá de especial?

Lembra dos ‘riscos e rabiscos’ sempre presentes no dia a dia do médico artista? Pois bem, esse hábito acabava produzindo uma grande quantidade de papeizinhos, e muitos foram jogados fora. Mas, o artista Kuroiwa percebeu que se tratavam de registros de emoções e memórias de momentos específicos. “Então, passei a colecionar aqueles desenhinhos feitos a caneta esferográfica. Depois recortava e comecei a colar em papel e em tela. Alguns recortes eram minúsculos – com 1 x 1 cm -, mas reunidos me deixavam satisfeito, pois constituíam uma narrativa. Um desses trabalhos de 1 x 1 m, reunia quase dois mil pequenos desenhos”, explica.

Para garantir a conservação – já que o papel sulfite amarelecia e a tinta esferográfica não é indelével, e se apagava – passou a trabalhar com caneta de bico de pena e tinta acrílica diluída. “Aí me perguntei: se eu vou fazer no papel para depois colar na tela, por que não fazer direto na tela? E assim foi!”, comenta.

Hoje, pinta os contornos dos detalhes com bico de pena, cria os volumes, sombras…. colore com pincel… Depois do trabalho pronto, uma camada de verniz é aplicada.

Detalhe: Wagner confessa que ainda tem muitos recortes de papel guardados.

Para ele, é fundamental um diálogo profundo entre criador e o trabalho, mas concluída a obra, o espectador entra no circuito. “E uma coisa muito importante nessa tríade Autor x Obra x Espectador, é que o que menos importa é o autor, porque ele se vai. O espectador se renova e a obra fica. Se ela tiver conteúdo, emoção e energia, talvez seja eterna, e quanto ao autor, a história é que vai definir se existe algum espaço para ele”, sentencia.

Sempre pass(e)ando por estilos e técnicas diferentes

Mesmo de forma tranquila, ele é imparável. Inspirado pela intensidade das cores e pelo brilho de linhas de bordar, por exemplo, Wagner Kuroiwa fez experiências com bordado sobre tela+pintura. Desenvolveu vários trabalhos a partir dessa mistura de processos e técnicas e um deles foi selecionado para uma grande exposição em São Paulo que contou com cerca de 600 inscritos. “Não fui premiado, mas o que me comoveu é que entre os 220 artistas selecionados e 268 quadros, o meu foi o vencedor pelo júri popular. Eu não imaginava que isso pudesse acontecer”, conta.

Ele trabalha, sem receio – e com muita dedicação – com materiais inusitados como radiografias (veja na página xx) e bem conhecidos (aquarela, tinta acrílica e giz pastel), mas parece que nunca é demais!

O que dizer, então das obras que combinam entalhe em madeira com outras técnicas? Esse capítulo começou lá pela década de 80, quando o artista aprendeu a pescar com isca artificial (quase todas à época eram importadas e relativamente caras) e resolveu produzir as suas, entalhando os peixinhos em madeira. Essa foi, na verdade, a porta de entrada para a nova experiência. “Comecei a entalhar figuras cada vez mais complexas, e aplicá-las sobre a madeira ou mesmo sobre a tela, colocando os meus desenhinhos em volta. Permeava, então, o entalhe com o acrílico e bico de pena, compondo um outro tipo de quadro”.

A experiência rendeu uma série – “Não fiz mais do que 10 trabalhos com entalhe”, diz – com obras encantadoras e complexas em seu desenvolvimento. Em um dos trabalhos, por exemplo, Kuroiwa esculpiu um Cristo com os apóstolos ao lado, peixes, pães e acrescentou um rosário. Trata-se de uma obra com tridimensionalidade e muita simbologia.

O que se percebe em todas essas experiências, é que o artista escolhe sempre não ficar no comum, mas experenciar para experimentar.

Trabalho conhecido

Em meados da década de 80 e respondendo a uma motivação pessoal, Kuroiwa estava pintando com frequência e intensidade muito grandes e acumulou um acervo considerável, momento em que começou a participar de exposições em espaços públicos e mostras. Ganhou prêmios e concursos – inclusive para ilustrar a capa da lista telefônica da região do ABC, reproduzida, depois, também na lista da região de Bauru. “Foram mais de 1 milhão de exemplares e isso deu uma grande visibilidade ao meu trabalho”, conta.

Participou de exposições individuais e coletivas, ganhou prêmios e viu seus trabalhos conquistarem o público.

Mas somente em 2017, por iniciativa do filho Bruno (que vive em Florianópolis), o artista passou a ter um site e dar mais atenção para as redes sociais. Formado em publicidade e com pós-graduação em administração de empresas, Bruno chegou em São Paulo com material pronto e um roteiro de ações.  “Eu falei: olha, a partir de agora você tem site, Instagram, Facebook, e-mail, cartão de visita… e a mudança começou ali, envolvendo toda a família!”, lembra Bruno, que sempre admirou o trabalho do pai e confiava que o público deveria ter acesso facilitado aos trabalhos.

A grande virada de chave foi dois anos depois, em 2019, quando Wagner Kuroiwa estava prestes a realizar em Madri sua primeira exposição individual internacional. “Pedi para a Bia (Beatriz, a irmã, que trabalha com Relações Públicas) uma ajuda para divulgar a exposição, e ela sugeriu fazer uma publicação numa rede social chamada Reddit. Publicamos uma foto simples, com meu pai segurando um quadro que estaria lá em Madri. Foi uma loucura!”, confessa Bruno. Em poucas horas o Instagram recebeu três mil novos seguidores (hoje são 80 mil) e em 18 horas a foto registrava seis milhões de visualizações. “Eu pensei: isso só pode ser trote!”, completa o pai artista. Definitivamente, não era!

O quadro em questão era “Dicotomia”, que junto de “Espelho” e “Atol das Rocas” compõe a obra “Tríptico” (alto da página). 

Além de Bruno e Beatriz, também a esposa, Deise, cuida da carreira de Wagner. “Hoje, suas obras podem ser encontradas em coleções de mais de 25 países”, conclui Bruno.

“A medicina se vale do conhecimento, da memória, do raciocínio lógico. na arte, você usa intuição, devaneio, imaginação, criação. São áreas distintas do cérebro, mas não há conflito, e sim uma otimização das partes.”

A grande virada de chave foi dois anos depois, em 2019, quando Wagner Kuroiwa estava prestes a realizar em Madri sua primeira exposição individual internacional. “Pedi para a Bia (Beatriz, a irmã, que trabalha com Relações Públicas) uma ajuda para divulgar a exposição, e ela sugeriu fazer uma publicação numa rede social chamada Reddit. Publicamos uma foto simples, com meu pai segurando um quadro que estaria lá em Madri. Foi uma loucura!”, confessa Bruno. Em poucas horas o Instagram recebeu três mil novos seguidores (hoje são 80 mil) e em 18 horas a foto registrava seis milhões de visualizações. “Eu pensei: isso só pode ser trote!”, completa o pai artista. Definitivamente, não era!

O quadro em questão era “Dicotomia”, que junto de “Espelho” e “Atol das Rocas” compõe a obra “Tríptico” (alto da página). 

Além de Bruno e Beatriz, também a esposa, Deise, cuida da carreira de Wagner. “Hoje, suas obras podem ser encontradas em coleções de mais de 25 países”, conclui Bruno.

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A arte presenteia a medicina

Especialista em Saúde Pública e Direito Sanitário pela Universidade de São Paulo, formado pela Escola Paulista de Medicina e ex-vice presidente da Fundação do ABC, atualmente Wagner Kuroiwa não atua mais na área, mas participa de dois grupos de estudo – um na USP e um na Universidade Federal de São Paulo.

Quando completou 40 anos de formação em Medicina, presenteou a universidade – mais precisamente o Laboratório de Anatomia – com uma pintura. Era um projeto antigo, que tinha em mente desde que ocupou os bancos da universidade como aluno e percebeu que, de forma geral, o choque na disciplina de Anatomia é muito forte para o jovem estudante. “Eu queria pintar imagens da Capela Sistina nas paredes do laboratório, tentando realmente chamar atenção para a questão da humanização da Medicina, e em 2016, quando completei 40 anos de formado, pensei: tem que ser agora. Eu não posso ficar mais esperando”.

Uma breve conversa com o diretor do laboratório – um pouco cético a princípio – e ele obteve a autorização. “Comecei quase que imediatamente, e hoje tem 10 murais pintados lá, o maior deles com 15m², retratando “A Criação de Adão”, de Michelangelo”, conta.

O artista, emocionado, participou da aula inaugural no laboratório naquele semestre, há sete anos, apresentando o trabalho aos jovens calouros. “Convidado a falar, chamei atenção para o fato de que a vida acadêmica deles se iniciava naquele ano, mas a vida médica teria começado quando, em algum momento no passado eles foram tocados por um sopro divino e escolheram a medicina”, relembra.

Uma outra obra linda e instigante reúne com precisão o olhar do artista e a vivência do médico: um Cristo com 3,5 m de altura,  literalmente “construído” a partir de fragmentos de radiografias que mostrassem fraturas, próteses, marcapassos e tomografias – que expressam, portanto, as dores das pessoas -, unidas com traços emocionados e significativos. “Foi uma obra realizada com muita dedicação e emoção. E não poderia ser diferente, porque acredito que se a obra não te emociona, não vai, também, despertar emoção no público”, pondera.

A obra foi exposta na Escola Paulista de Medicina e na Igreja Presbiteriana do Butantã.

“Embora meu trabalho tenha algumas imagens dantescas e escatológicas, procuro sempre ter uma mensagem otimista e de alento. Afinal, a arte pode, assim como a medicina deve, acalentar, consolar e, quem sabe, curar.”

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