…nas ruas desertas da velha São Paulo e nas vitrines assombradas por manequins elegantes
textos MONIQUE VANDRESEN e CLÁUDIO BRANDÃO
fotos BÓRIS KOSSOY
tratamento de imagem GUILHERME MELO
“EXISTEM TANTAS
VERDADES QUANTO
OS REFLEXOS DE UM
ESPELHO QUEBRADO”
No início de 2023 uma foto do presidente Lula gerou inúmeros debates. Publicada na capa do jornal Folha de S. Paulo, a foto mostra o presidente atrás de uma vidraça trincada por um tiro. A matéria tem como título “No foco de Lula, presença militar no Planalto é recorde”, e a legenda diz: “Foto feita com múltipla exposição mostra Lula ajeitando gravata e vidro avariado em ataque”. Publicada 10 dias depois da invasão à Praça dos Três Poderes, a foto é assinada pela fotojornalista Gabriela Biló. A imagem causou polêmica e dividiu a opinião nas redes sociais. O que pouca gente sabe é que enquanto o debate ganhava as redes, um dos maiores teóricos da fotografia descansava na Praia dos Açores, ao sul da Ilha de Santa Catarina.
Bóris Kossoy nasceu em São Paulo, em 1941, e vem se debruçando, há mais de cinco décadas, sobre a fotografia. Professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Kossoy divide seu tempo entre São Paulo e a capital catarinense. Estudioso do Campo da Fotografia com 17 livros publicados e traduzidos em várias línguas, ele lembra que o debate sobre fotografia e realidade é longo: existem ficções de diferentes naturezas constituintes no documento fotográfico. Outras ficções são aquelas do ponto de vista, do corte, da seleção do assunto: “existem tantas verdades quanto os reflexos de um espelho quebrado”.
Como pesquisador, a principal tese de Kossoy é, sem dúvida, a que trata da fotografia não como um simulacro do real, um espelho da realidade, mas como uma “segunda realidade”, aquela em que todas as possibilidades de interpretação do fato fotografado encontram um espaço de reflexão. E, se existe mais de uma interpretação, segue a ideia de que toda fotografia acaba por ser uma trama montada pelo fotógrafo.
“A fotografia tem uma realidade própria que não corresponde necessariamente à realidade que envolveu o assunto, objeto do registro, no contexto da vida passada. Trata-se da realidade do documento, da representação: uma segunda realidade, construída, codificada, sedutora em sua montagem, em sua estética, de forma alguma ingênua, inocente, mas que é, todavia, o elo material do tempo e espaço representado, pista decisiva para desvendarmos o passado”, diz em Realidades e Ficções na Trama Fotográfica, lançado em 1999.
Neste número da Mural, Bóris Kossoy nos apresenta sete fotografias de uma longa série que se inicia no longínquo 1971, com a primeira edição do fotolivro Viagem pelo Fantástico – edição esgotada e peça de colecionador. O livro foi reeditado em 2021, ao comemorar 50 anos, e segue surpreendendo a cada nova série editada pelo autor. Como no filme Blow Up, de Michelangelo Antonioni – baseado em um conto de Júlio Cortázar, mestre do “Realismo Mágico” (“Las babas del diablo”) –, nem tudo na imagem é o que parece ser.
Descendente de imigrantes que chegaram ao Brasil na década de 1920 (o pai era de Odessa, na então Rússia, e a mãe de Cracóvia, na Polônia), formou-se em arquitetura na década de 1960 e, além das carreiras de arquiteto e escritor, trabalhou como fotógrafo profissional em diversas revistas, escritórios e estúdios. A partir da década de 1970, começa a discutir a posição histórica da fotografia nas ciências sociais.
Uma de suas obras revela uma invenção solitária da fotografia por um francês, Hercule Florence, radicado no interior do estado de São Paulo. Hercule Florence, A Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil tem tradução em pelo menos cinco idiomas, e recentemente teve seu mérito reconhecido por um grupo de pesquisadores internacionais na Universidade de Évora, em Portugal, que concluíram que as amostras deixadas por Florence possuíam sais de prata na sua composição, fato que com muito bom humor ele diz já ter comprovado há vinte anos ou mais.
A última exposição – encerrada em fevereiro – foi Estranhamento, no Museu da Fotografia Fortaleza. Nela, 92 obras do artista, algumas nunca publicadas, mostram o Kossoy fotógrafo, um autor do “realismo fantástico” sul-americano que flerta com o surrealismo e nos fala dos mistérios das imagens e suas múltiplas “realidades”. “Hoje chegamos à verdade concreta de como as imagens moldam o duro mundo das notícias falsas, que é tóxico e tem impacto direto no comportamento e nas ações da comunidade. A imagem falsa atual cria o que muitas vezes é chamado de pós-verdade. É essa a verdade da representação fotográfica do futuro?”, pergunta.
Nem todo bom fotógrafo se transforma em um estudioso em fotografia e nem todo estudioso da fotografia se sobressai com seu próprio trabalho. Bóris Kossoy é uma exceção. Fotógrafo talentoso (tem obras expostas e nos acervos de importantes instituições internacionais, como MoMA, Metropolitan Museum of Art), também é um pesquisador respeitadíssimo no Brasil e no exterior.
“DEIXEMOS QUE
AS IMAGENS FALEM
POR SI MESMAS…”