Herdeira da companhia têxtil blumenauense escolheu Sambaqui, a 18 quilômetros do Centro de Florianópolis, para viver junto à natureza. Ela recebeu a Mural para mostrar o cantinho onde faz arte , escreve poemas e reflete sobre a saga da sua família
textos URBANO SALLES
fotos MARCO CEZAR
A subida demora alguns minutos até o topo do morro em Sambaqui onde Rafaela Hering Bell, 50 anos, vive há um ano num “exílio prazeroso”, como ela própria define. Tataraneta de Hermann Hering, um dos dois peixinhos da marca Hering, e neta da “dama de ferro” da companhia, Eulália Hering, a blumenauense encontrou na pequena casa, sem luxos, inserida num condomínio familiar, o espaço que procurava para viver em paz e criar sua arte – em todos os momentos, na companhia de Madame Framboesa, uma gata preta, de 13 anos, “como toda bruxa tem”, observa, irrompendo em uma de suas largas gargalhadas.
Rafaela é casada há sete anos com o músico Márcio Kuhn, cada um com seu próprio endereço.
“Vivemos juntos, mas separados, porque preciso desse espaço para mim como artista”, justifica. Ela é mãe de duas filhas de relacionamentos anteriores: a primogênita Isadora (natural de Blumenau) e a caçula Luisa, nascida em Florianópolis.
“Tenho uma fixação por Sambaqui desde que botei o pé aqui pela primeira vez, há 20 anos. Foi amor à primeira vista”, conta Rafaela, enquanto aponta com satisfação para a paisagem do mar que tem do seu refúgio. Quem descobriu o lugar foi a família do artista plástico Elias Andrade, o “Índio”, nativo de Sambaqui.
“Somos muito amigos. Claro que vimos apartamentos com muito mais elegância e estrutura, mas todos tinham muitas paredes. Insisti: eu quero ver o mar, quero morar no morro, sem barulho, perto da natureza. Quando estava quase desistindo, me ligou o filho do ‘Índio’ me dizendo que havia achado o lugar certo”, conta.
Na casa, cabem poucos móveis, como a mesa de trabalho de Rafaela, cujos pés foram desenhados pelo amigo Luiz Bernardes, influente artista, designer de móveis e fomentador cultural em Blumenau, em homenagem ao seu pai, o poeta Lindolf Bell (1938-1998). Em cima do tampo de vidro, diferentes edições do aclamado livro de poesia “As Annamárias”.
Bem ali perto, numa estante, há peças de Elke e alguns dos preciosos trabalhos da moradora no campo das artes, entre eles a caixa holográfica “Amar elo”. Todo o material é descartável: o tecido é de guarda-chuva, o papel, reciclado. “Holografia é a projeção em luz, só que hoje ela é feita de forma digital, e eu faço analógica. Para isso, nos últimos anos estudei até física óptica. Nessa peça aqui, aparece, projetada, a palavra amarelo, ‘amar elo’, dentro do quadro, uma projeção espelho”, explica a autora.
Os múltiplos talentos criativos de Rafaela, incluindo a facilidade para se comunicar que a levou aos 19 anos a cursar Comunicação na FAAP, a permitem transitar com naturalidade tanto pelas artes visuais quanto pela literatura, passando pela delicada arte de declamar, herdada do pai. “É uma coisa espiritual. A arte, a palavra, tenho uma necessidade de expressão. Sem elas, dói”, afirma.
Além da história daquela que já foi a maior companhia têxtil do país, Rafaela leva consigo há 28 anos a missão de cuidar da memória do pai e da mãe, a artista plástica Elke Hering (1940- 1994), cuja obra ganhou, neste ano, uma restropectiva inédita no Instituto Collaço Paulo, em Florianópolis. “Tenho uma gratidão imensa pelo Marcelo (Collaço Paulo), não só pela exposição, mas porque ele é uma das poucas pessoas com as quais posso falar sobre a obra da minha mãe. É uma alegria ver sua obra reunida e preservada”, celebra.
E é assim, entre lembranças – parte boas, outras nem tanto, como a longa disputa judicial familiar envolvendo milhões de reais – que Rafaela vai vivendo do jeito que sonhou e desenvolvendo as novidades da “ArteParaUsar”, sua empresa há oito anos. A iniciativa começa pela comercialização de obras de arte e antiguidades, e chega a projetos culturais, como a participação em parceria com Luiz Bernardes nos 200 anos do naturalista Fritz Müller, comemorados em 2022.
No “refúgio” de Rafaela, obras da mãe, Elke Hering, convivem com trabalhos autorais
Ainda dentro do combo de ações do “ArteParaUsar”, Rafaela trabalha com arte-educação, faz palestras, avalia obras de arte, dá assessoria para quem quer restaurar peças e incentiva novos artistas contemporâneos de Santa Catarina – como Ornella Jacobsen, de Timbó, hoje despontando em São Paulo -, entre outras atividades no setor cultural, especialmente no circuito Florianópolis/Blumenau.
Rafaela também é comodatária da Casa do Poeta Lindolf Bell, em Timbó, terra natal do seu pai. Há 20 anos, o espaço guarda um centro de memória com cerca de 10 mil documentos, fotos, imagens, cartazes e outros itens da trajetória do poeta. A meta atual da instituição é a digitalização do acervo.
“Meu foco principal é a arte catarinense, mas compro e vendo obras também de outras origens, de artistas como Cândido Portinari, Volpi e Tomie Ohtake. Tenho links, heranças do meu pai, que me indicam esses contatos fora de Santa Catarina”, revela. “Trabalhei e até hoje trabalho como louca”.
Nos últimos tempos, ela vem se aprofundando no universo da fotografia com impressão Fine Art, em papel de alta qualidade, tendo como mestre o fotógrafo blumenauense, reconhecido internacionalmente, Paulo Greuel (1951/2021). As fotos, ela tira de coisas e lugares do seu dia a dia, como o bananal próximo à sua casa, ou da borboleta morta que uma vizinha encontrou e que, depois de fotografada, respeitosamente foi devolvida à natureza.
A blumenauense nasceu na casa da avó, na rua que leva o nome do tataravô. Até a juventude, ainda nos tempos dourados da Hering, a inteligente e bela herdeira dificilmente imaginaria que teria dificuldades pela frente.
Em 1994, ela conta, começaram os problemas. Ações, segundo ela, “desapareceram” das suas mãos. O caso continua sendo alvo de disputa na Justiça. Recentemente, o processo foi noticiado pelo colunista Leo Dias, um dos mais lidos do país. “Minha avó era a maior acionista unitária da companhia. Eu e meus dois irmãos perdemos muito nesses anos todos. Minha mãe, quando estava com câncer, precisou de ajuda para pagar o tratamento”.
Rafaela está escrevendo um livro. “Memórias Póstumas Antecipadas” vai contar experiências da sua vida misturadas a histórias de pura ficção, trocando os nomes e os lugares, no estilo “qualquer semelhança é mera coincidência”, como brinca a autora.
Memórias
A blumenauense nasceu na casa da avó, na rua que leva o nome do tataravô. Até a juventude, ainda nos tempos dourados da Hering, a inteligente e bela herdeira dificilmente imaginaria que teria dificuldades pela frente.
Em 1994, ela conta, começaram os problemas. Ações, segundo ela, “desapareceram” das suas mãos. O caso continua sendo alvo de disputa na Justiça. Recentemente, o processo foi noticiado pelo colunista Leo Dias, um dos mais lidos do país. “Minha avó era a maior acionista unitária da companhia. Eu e meus dois irmãos perdemos muito nesses anos todos. Minha mãe, quando estava com câncer, precisou de ajuda para pagar o tratamento”.
Rafaela está escrevendo um livro. “Memórias Póstumas Antecipadas” vai contar experiências da sua vida misturadas a histórias de pura ficção, trocando os nomes e os lugares, no estilo “qualquer semelhança é mera coincidência”, como brinca a autora.
Alguns versos da poeta
“Menos led, mais lua”
“Queria que mais de um fosse meu coração”
“A poesia que me devora é a mesma que me alimenta”
Penso logo hesito… existo logo escrevo!
“Todo amor vale a pena, mesmo que seja apenas para escrever um breve poema”
“Que tal trocar despertador por despertamor?”
Que matéria linda, texto impecável… parabéns pelo site Marco
Amiga maravilhosa! Asiosa pra conhecer o cantinho!