HORA DA FARINHA!

Nos “bons” tempos a ilha chegou a ter mais de 400 engenhos de farinha. Hoje, a situação é bem diferente, mas há luz (e muita farinha) no final do túnel

textos LU ZUÊ
fotos MARCO CEZAR E ATAÍDE SILVA

Encerrando o primeiro semestre deste ano, o tradicional Engenho dos Andrades, em Santo Antônio de Lisboa, realizou uma farinhada pra lá de especial – a 1ª Farinhada do Projeto Mandioca Crioula -, que marcou o início da temporada da farinha polvilhada aqui na região.

O evento começou no sábado, com a colheita realizada na horta comunitária do Parque Cultural do Campeche (Pacuca), e seguiu no domingo, com a produção da farinha, almoço (peixe e linguiça fritos, um feijãozinho bem temperado, salada e pirão, é claro!) e uma roda de conversa que abriu espaço para se debater questões pontuais sobre a preservação dessa prática tão forte, bonita e significativa.

Como sempre acontece nas farinhadas, veio gente de diferentes lugares, todos interessados em acompanhar a produção artesanal que tem tudo a ver com cultura local e, na prática, contribuir o fortalecimento dessa prática que correu o risco de desaparecer. Mas não vai!

Proprietário do Engenho, Cláudio Andrade é um dos 14 filhos de Agenor Andrade, que em 1929 readquiriu a propriedade que já havia pertencido à sua família, onde funciona o Engenho. Depois disso, seus 14 filhos também nasceram ali, e conviveram com o cultivo da mandioca e produção da farinha desde a infância. “A gente costuma dizer que nosso primeiro presente era uma enxada, para desde cedo começar a capinar, ajudar na roça de feijão, cebola, plantar. Na época da produção da farinha, era trabalho dia e noite, com barulho do engenho e aquele cheirinho da torra. Às vezes a gente acordava de madrugada e vinha para cá, por gosto mesmo”, relembra.

Ele e os irmãos viveram no dia a dia a transmissão de saberes e práticas que tão bem caracteriza a cultura tradicional. Além do trabalho no cultivo, aprenderam todos o processo da fabricação da farinha. E foi com a mãe, Iracema Marta, sobre quem Cláudio fala com muita admiração. “Aprendemos toda essa parte operacional do engenho com ela. A minha mãe tanto sabia como raspar mandioca, quanto prensar e até cevar…. e era uma excelente forneira!”, conta, destacando a importância de cada detalhe para se chegar ao resultado final que tanto encanta quem experimenta. “Tudo é importante. O mestre forneiro, por exemplo, comanda um processo único, que define a crocância da farinha. É ele quem pega a matéria prima e trabalha, cuidando da temperatura do fogo, do tempo, equilibrando tudo com a velocidade com que mexe a farinha. Tem toda uma história que é preciso aprender vendo e fazendo”, acrescenta.

É bom lembrar que em 2022, os “Saberes e Práticas Tradicionais associados aos Engenhos de Farinha de Mandioca Artesanal do Município de Florianópolis” foram oficialmente reconhecidos como Patrimônio Cultural Imaterial. E o cultivo também não é assim tão simples: do momento em que coloca as ramas debaixo da terra à colheita, é  uma jornada de quase dois anos. O plantio acontece geralmente em setembro, e até julho do ano seguinte, além das capinas regulares é feita a poda (que aliás é replantada); só em maio do outro ano é que a mandioca poderá ser colhida.

“Por isso meu pai tinha sempre três roças plantadas em diferentes épocas, e assim garantia a farinha de todos os anos”, lembra Cláudio.

O (quase) fim de uma era

Cláudio lembra que houve um momento em que a especulação imobiliária e as dificuldades para produzir a farinha provocaram o fechamento de muitos engenhos. “Tivemos isso muito nítido aqui. Eu vi engenhos de vários produtores que eram amigos do meu pai fechando, as pessoas vendiam as terras e iam embora. E a gente resistia…”

Foi só quando perceberam que o pai, já idoso, estava doente, que a  produção foi interrompida. Era quase a mesma época em que o professos Nereu do Vale Pereira estava escrevendo o livro “Engenhos de Farinha de Mandioca da Ilha de Santa Catarina”, e isso foi uma motivação para retornarem ao trabalho. “Foi meio que uma conexão, uma virada de chave para que a gente não deixasse a tradição morrer”, confessa. Após a morte do seu Agenor. Em 1989, Cláudio adquiriu a propriedade e quase que imediatamente solicitou o tombamento voluntário pelo Patrimônio Histórico Municipal e na sequência, pelo Patrimônio Histórico Estadual. É a  única propriedade particular que teve pedido voluntário de tombamento”, fala com orgulho..

Em 1998 foi realizada a 1ª Farinhada do Divino, abrindo as comemorações da festa tradicional, e segundo Cláudio, a presença de um grande público e a ampla cobertura pela mídia serviram para dar visibilidade à causa. Muitas pessoas começaram a se darf conta sobre a riqueza cultural que estava sendo esquecida. “Foi um efeito dominó e alguns engenhos foram reativados”, conta.

Compromisso com educação e tradição

Há mais de 20 anos o Engenho dos Andrades é um espaço de educação patrimonial, e regularmente recebe alunos de escolas de todo o Estado. “Os estudantes vêm aqui e realizamos atividade lúdicas. Explicamos o contexto histórico dos engenhos de farinha e das tradições, fazemos uma interação com o boi de mamão – que é cultura genuinamente catarinense -. contação de histórias e repassamos ensinamentos sobre o universo mágico e fantástico da Ilha”, explica. O objetivo é chamar a tenção para a importância de repassar e difundir a cultura.

Outra iniciativa que vem ganhando ainda mais força a partir da criação da Rede Catarinense de Engenhos de Farinha é a revitalização e reativação de alguns engenhos na Grande Florianópolis.

José Roberto de Andrade, o Beto, irmão de Cláudio, é pedreiro, marceneiro e mestre de engenho, um ofício que também era passado de pai para filho e que acabou caindo no esquecimento. Beto se dedica ao reparo de peças para restaurar antigos engenhos, e assim, de passo em passo, de peça em peça, de conexões e memórias afetivas que se transformam em ações, a cultura vem sendo mantida viva, de forma colaborativa.

A horta do Pacuca

Você sabia que existem 618 variedades de mandioca catalogadas no Brasil?

E por aqui há um grupo trabalhando muito para resgatar algumas espécies que estavam desaparecendo, principalmente por falta de cultivo.

A horta no Parque Cultural do Campeche foi criada há dois anos com o objetivo de resgatar e salvaguardar a mandioca crioula e recuperar as ramas que nossos antepassados cultivavam por aqui. “Falar de mandioca é falar de nossa história, de nossa cultura e, literalmente, de nossas raízes. E é muito bom ver produtores tradicionais, agricultores, representantes da academia e a Epagri, todos trabalhando juntos para fazer acontecer o Projeto Mandioca Crioula e fortalecer essa cultura tradicional”, comentou Ataíde Silva, presidente da Associação Amigos do Pacuca.

E os resultados começam a surgir! No terreno da associação, em canteiros com 11 x 25 m foram “resgatadas” 11 variedades de mandioca que já não eram mais encontradas  – uma delas, a “vermelhinha”, que foi colhida para a farinhada no Engenho dos Andrades. “Existe um universo agrícola em Florianópolis, e é de fundamental importância cuidar bem disso. É cultura e tradição, e ao mesmo tempo olha para o futuro, porque tem a ver, também, com o turismo de base comunitária, que é uma forma de promover a sustentabilidade dessas práticas”, concluiu Silva.

VIVA a tradição

A valorização e fortalecimento da cultura dos engenhos de Farinha abre espaço, simultaneamente, para outras manifestações. As carreatas de carros-de-boi são um exemplo: profundamente ligadas à cultura dos engenhos, esses desfiles de tradição levam para a rua o som característico – o “choro” das rodas – e encantam pela história que trazem junto.

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